“ A maior parte das pessoas passa a vida a evitar o trauma. Os freaks já nascem com o seu trauma, já ultrapassaram essa fase. São aristocratas” Diane Arbus
“Fur”, o segundo filme de Steven Shainberg, assume-se como um retrato imaginário de Diane Arbus.
Muitas das críticas na altura da estreia do filme diziam que pouco se aprendia aqui sobre a vida e obra de uma das fotógrafas mais influentes da segunda metade do século XX. E sim, realmente faltam as referências temporais, a sequência de factos. Saltam-se muitas partes importantes da vida de Arbus, como as aulas que teve com Lisette Model, e que a influenciaram profundamente. Mas no que diz respeito às emoções, ao que move o trabalho, está tudo lá. Porque, pegando nas palavras de Arbus, ”Estas são personagens num conto de fadas para adultos”.
“Fur” é menos biografia e mais ilustração visual para o mundo e para o trabalho de Diane Arbus, um conto de fadas grotesco e terno. E o conjunto do trabalho de Arbus parece isso mesmo, um conto de fadas bizarro no qual se procura a verdade crua, aquela que foge por entre os dedos na vida real porque o que está à superfície é mais fácil de agarrar, tem menos contornos.
A câmara de Arbus procurou desvendar um segredo através da realidade que só uma fotografia pode dar, mostrando aquilo que nem sempre é visível a olho nu, mas que a objectiva capta. Uma realidade alternativa mas nem por isso menos verdadeira porque revela o que é profundo, o que se esconde nas margens. Porque a fotografia foca apenas o que é importante, deixando difuso o que nos distrai. No caso de Diane Arbus, foca o rosto do sujeito, freaks, aberrações, doentes de instituições mentais, num frente a frente entre retratado e fotógrafo.
Em quase todas as fotografias de Arbus, os retratados olham directamente a objectiva. Para que quem vê as fotografias também olhe directamente nos olhos dos retratados. E se reconheça. Porque um freak é alguém que não se adapta e para isso não é preciso ter o corpo coberto de pêlo como a personagem de Robert Downey Jr. Basta termo-nos sentido deslocados uma vez na vida para entender. Porque estamos todos interligados. Tal como no filme, em que o alçapão liga a casa de Diane ao sótão de Lionel, uma porta aberta entre o mundo dito normal e um outro, que não encontra definição que lhe assente. Uma porta que Diane tentou sempre abrir com o seu trabalho, porque no fundo sabia que não existe uma divisão e que na maior parte do tempo os verdadeiros freaks estão algures entre um mundo e outro, sem pertencer realmente a nenhum.
Nascida e criada numa família rica de origem judaica, em Nova Iorque, Diane teve acesso privilegiado a tudo. Mas isso não a impedia de ainda muito nova ir para o parapeito do apartamento dos pais e olhar para a cidade cá em baixo, só para perceber se alguma vez conseguiria saltar. Para perceber qual era a sua relação com o abismo.
Quando mais tarde casou com Allan Arbus e se tornou sua assistente de fotografia nas campanhas de moda e publicidade, Diane continuava a olhar para o que a rodeava como se ainda estivesse no parapeito da janela. Um ponto de vista que lhe permitia encontrar algo de estranho e grotesco naquele mundo artificialmente belo, em que tudo era encenado. Devia existir algo de mais verdadeiro e visceral. E aos poucos, começou a explorar a sua própria visão, procurando novamente o tal abismo que tornava tudo mais real, à flor da pele. Deixou as revistas de moda e procurou pelos bares da cidade, pelas ruas, vielas e parques, procurando uma junção entre normal e estranho. O tal espaço intermédio entre dois mundos. E muitas das fotografias de Arbus resultam dessa união de opostos, do elemento perturbador no normal e do quanto o normal pode ser perturbador.
Não é de espantar que o trabalho de Diane Arbus tenha atraído Steven Shainberg. O seu primeiro filme, “A Secretária”, falava também sobre dois inadaptados que encontram contexto um no outro. Aqui não existiam anãs que bebem chá com os pés, gigantes de 2 metros, gémeas siamesas ou sótãos cheios de sensações por descobrir. Mas existia um escritório, também local de descobertas e de abismos, também ele contrastando em conforto e calor com o mundo cá fora, mais asséptico e frio. E nesse espaço muito parecia estranho e bizarro, mas nunca tanto como parecia cá fora. Porque pelo menos sentia-se como verdadeiro. Nem sempre fácil ou bonito, mas honesto. Como o trabalho de Arbus.
E também existiam freaks, mas estes sem nenhuma deformidade física, apenas emocional, que é a verdadeira deformidade e nos pode afectar a todos. Tal como Lionel em “Fur”, que rapa todos os pêlos que lhe cobrem o corpo, para mostrar que por baixo de toda a deformidade continua igual a qualquer outro.
Como a colónia de nudistas que Arbus fotografou, em que famílias inteiras faziam o mesmo que outras tantas famílias faziam por todo o mundo no mesmo instante. A diferença é que estas famílias não tinham roupa. Será essa diferença assim tão grande, será que a aparência tem mais significado do que o gesto em si? Será tudo apenas uma questão de pele?
Diane Arbus usava uma câmara com écran ao nível da cintura para que pudesse interagir com os retratados de uma forma mais directa, sem a invasão de uma objectiva ao nível do olhar. Criava uma espécie de “sótão” ou “escritório” emocional onde o sujeito se sentisse confortável para enfrentar o seu próprio abismo. Observando o écran à medida que falava com eles, procurando o momento em que o sujeito se revelava, para conseguir captar um instante da sua verdadeira humanidade, só possível nesse espaço de segurança.Em 1969, Arbus começa o seu último projecto, fotografando doentes com deficiências mentais em sanatórios. Depois de concluído o projecto, em 1971, Diane Arbus suicidou-se, cortando os pulsos e tomando uma dose elevada de barbitúricos, depois de um longo período em que se encontrou em depressão. É claro que qualquer teoria sobre a sua morte será apenas mera especulação, tal como é apenas especulação e fantasia o mundo que Shainberg criou para ilustrar o trabalho de Arbus. Mas como qualquer artista, Diane tentou sempre tocar o outro, provocar emoções. E tal como o seu trabalho provoca determinadas reacções em Shainberg, eu gosto de acreditar que o confronto olhos nos olhos com aqueles doentes mentais foi demasiado para ela, o reflexo do espelho foi demasiado claro e gritante. O que no fundo, foi o objectivo da sua vida, mostrar um espelho ao mundo cujo reflexo fosse cortante, mas que nunca revelasse tudo, porque “quanto mais nos é mostrado, menos sabemos.” Porque a fotografia é um segredo sobre um segredo.” “Tell me a secret....”.
P.S. : Se não viram "Fur" quando esteve nos cinemas, deve estar quase a sair em dvd. A nível de timming e actualidade este post não tem muito de nenhum deles lol mas de alguma forma pareceu-me correcto pô-lo assim, sem aparente ligação com nada, no meio da minha trilogia Catwoman. Porque Arbus detestava "caixas" e eu também. Passou a vida a tentar quebrar barreiras e pareceu-me adequado falar sobre ela assim, só porque sim, sem qualquer razão aparente que o justificasse....because life flows like water and cannot be trapped.... Porque tal como Arbus, o meu único vício são pessoas.... and like life, people also cannot be trapped, only discoverd...