Friday, October 5, 2007

Intervalo

As conversas sussurradas, a troca de desgraças do passado ao som daquele tom neutro e pseudo-sabedor de quem já passou por muitas noites assim. Como se isso tornasse as coisas mais fáceis, como se o sofrimento fosse um preço razoável a pagar à “ordem natural das coisas”.
Dá-me vontade de fugir para um lugar qualquer onde gritar seja permitido, onde o histerismo seja normal. Sinto-me desconfortável naquele ambiente solene e sombrio. Sempre gostei do choro e do caos. Parecem-me mais adequados à situação. Não sei como reagir à etiqueta da vigília fúnebre. É anti – natura aquela apatia colectiva, aquele pesar em
grupo.
A minha dor não é igual à dos outros. Tal como a dos outros não é igual à minha.

Sempre achei que a dor devia ser vivida na solidão da caverna. Para mim, é surrealmente estranho partilhá-la com um grupo de virtuais desconhecidos, criaturas que não vemos há décadas mas que se acham no direito de exigir uma forma visível de sofrimento, mais para conforto próprio do que nosso. Enquanto o ritual for cumprido sem desvios à regra, tudo pode continuar arrumado na sua "caixa" e o mundo vive em ordem aparente. Todos dormimos melhor no embalo da nossa ignorância infligida, na negação de que viver cansa, dói e faz crescer.


Detesto pessoas fechadas em casulos, que completam o círculo antes do fim da viagem. E detesto o paternalismo e condescendência com que olham aqueles que se admitem perdidos, vagueando pelo mundo à procura de rumo, acertando e errando, vivendo e sofrendo. Ao seu próprio ritmo, com a sua própria bússola, tentando fazer algum sentido das coordenadas, contornando desvios causados por efeitos magnéticos enganadores . O sítio onde se chega é longínquo e infinitamente pessoal.


Todos os funerais deviam ser como os rituais índios, com cantos sentidos e melancólicos, ruído de fundo para um sofrimento profundamente íntimo e espiritual. E no final, devolver o corpo aos elementos, numa espiral de fumo e cinzas. Porque somos a "quinta-essência do Pó". Porque pertencemos ao Espaço. Do Big Bang nasceram estrelas, planetas, galáxias. E depois deste Small Bang, é altura de as visitar.


P.S. : Este texto estava na gaveta há algum tempo e veio à superfície agora, não sei bem porquê. Talvez porque tenha visto Hamlet e recordado o belíssimo texto de Shakespeare (numa encenação muito bem conseguida de João Mota). Talvez porque há tanto sobre a Morte e sobre a Existência naquelas palavras, sobre a condição de Ser e um dia Não Ser, sobre a Dor de uma perda tão profunda que levanta todas estas questões e despoleta todos os sentimentos que servem de barro ao Homem. Como diria C.S Lewis, um barro que é moldado por Deus. Eu digo moldado pelo Destino, que no meu vocabulário talvez seja um sinónimo. Destino como Vida, não como Fado e Fatalismo. Essa é apenas uma das estradas...Com Shakespeare, percorremos todas. Porque o Homem tem mais dimensões para além daquelas que o seu corpo define. "Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,do que sonha a tua filosofia."

Bom feriado e bom fim de semana a todos!




3 comments:

João Roque said...

Querida Catwoman
tanta coisa a dizer sobre este texto, mas mais que dizer, respeitar o teu sentir, mesmo que, por vezes, me pareça algo masoquista, desculpa a franqueza.
depois, reflectes sobre a morte, essa sinisra e sorrateira visita, que todos, mais tarde ou mais cedo, receberemos; quantas vezes o não faço, nalguns casos envolvendo-me eu próprio no enredo, noutras, por interpostas pessoas. Chegaste lá, usando como veículo uma peça, "Hamlet" que infelizmente não posso ver, pois já estão esgotadas todas as sessões até à última representação; será porque toda a gente quer reflectir sobre a morte?
Duvido...
Minha amiga, tenho estado ùltimamente algo só, tenho reflectido, mais sobre a vida do que sobre a morte. E tem dado frutos; porque não experimentas?
Bom fim de semana, com Sol, se possível, fora e dentro de ti.
Beijoquitas, muitas, e amigas.

Miss Vesper said...

"(...) Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York;
And all the clouds that lour'd upon our house
In the deep bosom of the ocean buried.
Now are our brows bound with victorious wreaths;
Our bruised arms hung up for monuments;
Our stern alarums chang'd to merry meetings,
Our dreadful marches to delightful measures.
Grim-visag'd war hath smooth'd his wrinkled front;
And now,--instead of mounting barbed steeds
To fright the souls of fearful adversaries,--
He capers nimbly in a lady's chamber
To the lascivious pleasing of a lute.
But I,--that am not shap'd for sportive tricks,
Nor made to court an amorous looking-glass;
I, that am rudely stamp'd, and want love's majesty
To strut before a wanton ambling nymph;
I, that am curtail'd of this fair proportion,
Cheated of feature by dissembling nature,
Deform'd, unfinish'd, sent before my time
Into this breathing world scarce half made up,
And that so lamely and unfashionable
That dogs bark at me as I halt by them;--
Why, I, in this weak piping time of peace,
Have no delight to pass away the time,
Unless to spy my shadow in the sun,
And descant on mine own deformity:
And therefore,--since I cannot prove a lover,
To entertain these fair well-spoken days,--
I am determined to prove a villain,
And hate the idle pleasures of these days.
Plots have I laid, inductions dangerous,
By drunken prophecies, libels, and dreams,
To set my brother Clarence and the king
In deadly hate the one against the other:
And if King Edward be as true and just
As I am subtle, false, and treacherous,
This day should Clarence closely be mew'd up,--
About a prophecy which says that G
Of Edward's heirs the murderer shall be.
Dive, thoughts, down to my soul:--here Clarence comes.
(...)"


se não é para já, é para depois, se não for para depois é para já, senão não for para já, terá que ser para depois ;)

after eight kisses

Tongzhi said...

Ainda bem que estava guardado e que aparece agora.
Sabes porquê?
Porque possivelmente se o tens publicado na altura nao o teria lido.
Gostei muito e partilho grande parte das tuas reflexões sobre o assunto.
Fez-me recordar uma situação vivida que me foi, particularmente, difícil...
Beijos agradecidos!