As conversas sussurradas, a troca de desgraças do passado ao som daquele tom neutro e pseudo-sabedor de quem já passou por muitas noites assim. Como se isso tornasse as coisas mais fáceis, como se o sofrimento fosse um preço razoável a pagar à “ordem natural das coisas”.
Dá-me vontade de fugir para um lugar qualquer onde gritar seja permitido, onde o histerismo seja normal. Sinto-me desconfortável naquele ambiente solene e sombrio. Sempre gostei do choro e do caos. Parecem-me mais adequados à situação. Não sei como reagir à etiqueta da vigília fúnebre. É anti – natura aquela apatia colectiva, aquele pesar em grupo.
A minha dor não é igual à dos outros. Tal como a dos outros não é igual à minha.
Sempre achei que a dor devia ser vivida na solidão da caverna. Para mim, é surrealmente estranho partilhá-la com um grupo de virtuais desconhecidos, criaturas que não vemos há décadas mas que se acham no direito de exigir uma forma visível de sofrimento, mais para conforto próprio do que nosso. Enquanto o ritual for cumprido sem desvios à regra, tudo pode continuar arrumado na sua "caixa" e o mundo vive em ordem aparente. Todos dormimos melhor no embalo da nossa ignorância infligida, na negação de que viver cansa, dói e faz crescer.
Detesto pessoas fechadas em casulos, que completam o círculo antes do fim da viagem. E detesto o paternalismo e condescendência com que olham aqueles que se admitem perdidos, vagueando pelo mundo à procura de rumo, acertando e errando, vivendo e sofrendo. Ao seu próprio ritmo, com a sua própria bússola, tentando fazer algum sentido das coordenadas, contornando desvios causados por efeitos magnéticos enganadores . O sítio onde se chega é longínquo e infinitamente pessoal.
Todos os funerais deviam ser como os rituais índios, com cantos sentidos e melancólicos, ruído de fundo para um sofrimento profundamente íntimo e espiritual. E no final, devolver o corpo aos elementos, numa espiral de fumo e cinzas. Porque somos a "quinta-essência do Pó". Porque pertencemos ao Espaço. Do Big Bang nasceram estrelas, planetas, galáxias. E depois deste Small Bang, é altura de as visitar.
P.S. : Este texto estava na gaveta há algum tempo e veio à superfície agora, não sei bem porquê. Talvez porque tenha visto Hamlet e recordado o belíssimo texto de Shakespeare (numa encenação muito bem conseguida de João Mota). Talvez porque há tanto sobre a Morte e sobre a Existência naquelas palavras, sobre a condição de Ser e um dia Não Ser, sobre a Dor de uma perda tão profunda que levanta todas estas questões e despoleta todos os sentimentos que servem de barro ao Homem. Como diria C.S Lewis, um barro que é moldado por Deus. Eu digo moldado pelo Destino, que no meu vocabulário talvez seja um sinónimo. Destino como Vida, não como Fado e Fatalismo. Essa é apenas uma das estradas...Com Shakespeare, percorremos todas. Porque o Homem tem mais dimensões para além daquelas que o seu corpo define. "Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,do que sonha a tua filosofia."
Bom feriado e bom fim de semana a todos!