Parecia saída de um guarda-fatos de Narnia, cheia de colares de pérolas, rendas pretas e casacos de peles. Aparecia sempre de surpresa, cansada e vagamente perdida no tempo, como se tivesse vindo numa perignação de doces e histórias tristes. Os doces vinham na mala preta de lantejoulas, reminiscente dos anos 20. As histórias, essas, vinham nos olhos azuis, líquidos e transparentes como água. Eram levemente cinzentos como um mar que já viu muitas tempestades.
Lembro-me de poucas coisas concretas a respeito dela mas é uma presença omnipresente nas minhas memórias de infância. Como um cheiro que nos remete para algo que vivemos, também ela era uma âncora que me ligava à pessoa que eu era. Não pela proximidade emocional mas pelo mecanismo de busca que activava no meu cérebro.
Quando estas âncoras desaparecem será que perdemos um pouco dessa essência distante? Será que os fragmentos esfumaçados da nossa memória são suficientes para ainda lhe dar consistência?
Quando me lembro dela recupero memórias cuja existência eu desconhecia. Provavelmente estavam perdidas no mesmo guarda-fatos de onde ela saia e onde eu me escondia quando era pequena, para fugir da minha avó. Sentava-me no meio dos casacos e em cima das mantas e ali ficava, no escuro, à espera que me encontrassem.
Estas memórias deviam estar no bolso de um desses casacos. Agora que o voltei a usar, levei a mão ao bolso e encontrei-as. Como uma nota ou um bilhete antigo de cinema, já sem cor, que nos faz viajar para o passado.
Se calhar, há uma parte de nós que se torna inacessível à medida que vamos crescendo e só estas âncoras têm força suficiente para as manter à tona. Ou então, a pessoa que erámos nessa infância distante começa a assemelhar-se às imagens do Titanic no fundo do oceano: um pedaço de aço enferrujado a destilar memórias no silêncio líquido. Em toda a sua glória e beleza misteriosa, torna-se indestrutível. O preço que pagamos por esta sobrevivência teimosa é a distância. Da realidade e das âncoras que nos prendem ao solo.
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